Uma noite destas, vindo da cidade para oEngenho Novo, encontrei no trem da Central umrapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e dechapéo. Comprimentou-me, sentou-se ao pé demim, falou da lua e dos ministros, e acabou recitando-meversos. A viagem era curta, e os versospóde ser que não fossem inteiramente maus. Succedeu,porém, que como eu estava cançado,fechei os olhos tres ou quatro vezes; tanto bastoupara que elle interrompesse a leitura e mettesse osversos no bolso.
—Continue, disse eu accordando.
—Já acabei, murmurou elle.
—São muito bonitos.
Vi-lhe fazer um gesto para tiral-os outra vez dobolso, mas não passou do gesto; estava amuado. Nodia seguinte entrou a dizer de mim nomes feios, eacabou alcunhando-me Dom Casmurro. Os visinhos,que não gostam dos meus habitos reclusos e calados,deram curso á alcunha, que afinal pegou.Nem por isso me zanguei. Contei a anecdota aosamigos da cidade, e elles, por graça, chamam-meassim, alguns em bilhetes: «Dom Casmurro, domingovou jantar com você.»—«Vou para Petropolis,Dom Casmurro; a casa é a mesma da Rhenania;vê se deixas essa caverna do Engenho Novo,e vae lá passar uns quinze dias commigo.»—«Meucaro Dom Casmurro, não cuide que o dispensodo theatro amanhã; venha e dormirá aqui nacidade; dou-lhe camarote, dou-lhe chá, dou-lhecama; só não lhe dou moça.»
Não consultes diccionarios. Casmurro não estáaqui no sentido que elles lhe dão, mas no que lhepoz o vulgo de homem calado e mettido comsigo.Dom veiu por ironia, para attribuir-me fumos defidalgo. Tudo por estar cochilando! Tambem nãoachei melhor titulo para a minha narração; se nãotiver outro d'aqui até ao fim do livro, vae estemesmo. O meu poeta do trem ficará sabendo quenão lhe guardo rancor. E com pequeno esforço,sendo o titulo seu, poderá cuidar que a obra é sua.Ha livros que apenas terão isso dos seus autores;alguns nem tanto.
Agora que expliquei o titulo, passo a escrevero livro. Antes disso, porém, digamos os motivosque me põem a penna na mão.
Vivo só, com um creado. A casa em que moro épropria; fil-a construir de proposito, levado de umdesejo tão particular que me vexa imprimil-o, masvá lá. Um dia, ha bastantes annos, lembrou-mereproduzir no Engenho Novo a casa em que mecriei na antiga rua de Matacavallos, dando-lhe omesmo aspecto e economia daquella outra, quedesappareceu. Constructor e pintor entenderambem as indicações que lhes fiz: é o mesmo predioassobradado, tres janellas de frente, varanda aofundo, as mesmas alcovas e salas. Na principaldestas, a pintura do tecto e das paredes é mais oumenos egual, umas grinaldas de flores miudas egrandes passaros que as tomam nos bicos, de espaçoa espaço. Nos quatro cantos do tecto as figurasdas estações, e ao centro das paredes os medalhõesde Cesar, Augusto, Nero e Massinissa, comos nomes por baixo... Não alcanço a razão de taespersonagens. Quando fomos para a casa de Matacavallos,já ella estava assim decorada; vinhado decennio anterior. Naturalmente era gosto dotempo metter sabor classico e figuras antigas empinturas americanas. O mais é tambem analogo eparecido. Tenho chacarinha, flôres, legume, umacasuarina, um poço e lavadouro.